O desânimo é uma doença contagiosa


Na minha cidade natal, a Beira, vivi a minha infância num bairro chamado Maquinino. E passava tardes inteiras na pequena alfaiataria de um indiano chamado Ratilal. Nesse estabelecimento escuro, de paredes estreitas, eu me demorava tardes inteiras. Havia um rádio ligado a uma estação emissora da Índia que transmitia, de modo roufenho e cheio de interferências, canções numa língua que eu não entendia. O que me encantava, porém, era o modo sereno como as mãos do alfaiate manipulavam os rolos de tecidos. Aqueles gestos sem esforço nem ruído me dissolviam. As mãos do alfaiate cumpriam uma dança mágica, enquanto desenhavam peças de roupa com giz branco, rodavam e recortavam os panos. Nessa contemplação eu ganhava sono a ponto de adormecer e só despertar sacudido pela voz de um muito raro cliente. Quando a minha mãe me perguntava por que razão tanto me demorava no velho estabelecimento eu respondia que o alfaiate me contava histórias e lendas da Índia. Era mentira. Eu simplesmente tinha vergonha de dizer que me fascinava o gesto cru da mão fazendo roupa, como se, daquele modo, a própria mão se fizesse roupa.

 Quarenta anos depois revisitei a minha cidade e, com algum receio, fui ao meu bairro para confirmar se ainda existia a alfaiataria. Existia. E lá estava o mesmo alfaiate, mais dobrado, os dedos nodosos ainda recortando o pano. Obviamente, ele não se recordava de mim, mas quando me anunciei, eu vi que os olhos dele se marejavam. Tivera súbito acesso a uma lembrança? Não, aquela era a tristeza de não poder recordar-se de si mesmo, quando ele ainda navegava nas românticas canções indianas. O velho Ratilal permaneceu calado por um tempo. Na primeira oportunidade, desatou a vociferar contra os males do mundo, dizendo mal de tudo e de todos. Ele queria vingar-se de qualquer coisa que não tinha nome, queria ser escutado por alguém que estivesse vivo na sua própria vida. E até ao final da visita não escutei senão amargas queixas e ásperas acusações. Onde estava aquela criatura doce e de modos tranquilos que eu conhecera? 

Sucedera com o alfaiate aquilo que se passara com muitos de nós. Azedara. Ao escutar o velho Ratilal, alguma coisa se rasgou como um pano dentro de mim. A amargura do alfaiate dilacerava a memória de um tempo em que eu adormecia entre tecidos e canções. Era como se a descrença do futuro de Ratilal me roubasse o meu próprio passado. Entendi, então: o desânimo é uma doença contagiosa. E pode ser fatal. Cedemos a essa contaminação como que arrastados por uma vertigem e algo se derrama para sempre.


Mia Couto, in E se Obama fosse africano? e outras interinvenções, 2009

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