Jorge Reis-Sá

Pai, a minha Sombra és tu


a cadeira está vazia, um corpo ausente

não aquece a madeira que lhe dá forma


e não ouço o recado que me quiseste dar

nem a tua voz forte que grita meninos

na hora de acordar

ouço o teu abraço, no corredor em gaia

e os olhos molhados pela inusitada despedida


o sol foge

mas o crepúsculo desenha a sombra que

tenho colada aos pés

ou o espelho, coberto com a tua face


pai, digo-te

a minha sombra és tu



imagem public domain pictures


Nuno Júdice

A vida


A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam
quando não se espera, o atraso na preocupação
dos teus olhos, e as nuvens que caíram
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações
a abrir-se para dentro e para fora
dos sentidos que nada têm a ver com círculos,
quadrados, rectângulos, nas linhas
rectas e paralelas que se cruzam com as
linhas da mão;
a vida que traz consigo as emoções e os acasos,
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
e dos encontros que sempre se soube que
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
sob a luz indecisa que apenas mostra
as paredes nuas, de manchas húmidas
no gesso da memória;
a vida feita dos seus
corpos obscuros e das suas palavras
próximas.


                                                                                                                        

 imagem wallpaperflare


Fernando Pessoa

Horizonte



Ó mar anterior a nós, teus medos

Tinham coral e praias e arvoredos.

Desvendadas a noite e a cerração,

As tormentas passadas e o mistério,

Abria em flor o Longe, e o Sul sidério

Esplendia sobre as naus da iniciação.


Linha severa da longínqua costa —

Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta

Em árvores onde o Longe nada tinha;

Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:

E, no desembarcar, há aves, flores,

Onde era só, de longe a abstracta linha.


O sonho é ver as formas invisíveis

Da distância imprecisa, e, com sensíveis

Movimentos da esperança e da vontade,

Buscar na linha fria do horizonte

A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte —

Os beijos merecidos da Verdade.



in Mensagem, 1934 


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Não digas nada


Não digas nada!

Não, nem a verdade!

Há tanta suavidade

Em nada se dizer

E tudo se entender —

Tudo metade

De sentir e de ver...

Não digas nada!

Deixa esquecer.


Talvez que amanhã

Em outra paisagem

Digas que foi vã

Toda esta viagem

Até onde quis

Ser quem me agrada...

Mas ali fui feliz...

Não digas nada.



Poesias Inéditas (1930-1935)

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Miguel Torga

Vesperal



E, contudo, é bonito

O entardecer.

A luz poente cai do céu vazio

Sobre o tecto macio

Da ramagem

E fica derramada em cada folha.

Imóvel, a paisagem

Parece adormecida

Nos olhos de quem olha.

A brisa leva o tempo

Sem destino.

E o rumor citadino

Ondula nos ouvidos

Distraídos

Dos que vão pelas ruas caminhando

Devagar

E como que sonhando,

Sem sonhar…


in Antologia Poética, 1984


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Sophia de Mello Breyner Andresen


Iremos juntos sozinhos pela areia

Embalados no dia

Colhendo as algas roxas e os corais

Que na praia deixou a maré cheia.


As palavras que disseres e que eu disser

Serão somente as palavras que há nas coisas

Virás comigo desumanamente

Como vêm as ondas com o vento.


O belo dia liso como um linho

Interminável será sem um defeito

Cheio de imagens e conhecimento.



in No Tempo Dividido, 1954


imagem freepik



Florbela Espanca

Ser Poeta


Ser poeta é ser mais alto, é ser maior

Do que os homens! Morder como quem beija!

É ser mendigo e dar como quem seja

Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!


É ter de mil desejos o esplendor

E não saber sequer que se deseja!

É ter cá dentro um astro que flameja,

É ter garras e asas de condor!


É ter fome, é ter sede de Infinito!

Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...

É condensar o mundo num só grito!


E é amar-te, assim, perdidamente...

É seres alma, e sangue, e vida em mim

E dizê-lo cantando a toda a gente!


Charneca em Flor, 1931

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What a Wonderful World


I see trees of green

Red roses too

I see them bloom

For me and you

And I think to myself

What a wonderful world


I see skies of blue

And clouds of white

The bright blessed day

The dark sacred night

And I think to myself

What a wonderful world


The colors of the rainbow

So pretty in the sky

Are also on the faces

Of people going by

I see friends shaking hands

Saying, "How do you do?"

They're really saying

I love you


I hear babies cry

I watch them grow

They'll learn much more

Than I'll ever know

And I think to myself

What a wonderful world

Yes, I think to myself

What a wonderful world

Ooh, yes


(Bob Thiele e George David Weiss, 1967)

imagem pinterest

Canção gravada pela primeira vez na voz de Louis Armstrong ( What A Wonderful World)



António Manuel Pires Cabral

Recado aos corvos


Levai tudo:
o brilho fácil das pratas,
o acre toque das sedas.


Deixai só a incomensurável
memória das labaredas
 

imagem freepik

Defeito de Fabrico


Quando nasci, trazia de origem
um farol que despejava luz a jorros
sobre o que quer que fosse,
mormente sobre as dobras

Mas, por estranho que pareça,
também os faróis estão sujeitos
às leis da erosão,

e o meu farol deliu-se. Hoje não é
mais do que um triste farolim de bicicleta
que apenas me alumia dois palmos de noite.

Amanhã estará reduzido
a uma simples lanterna de bolso
com que mal poderei reconhecer
o lugar onde estou.

Até que um dia será, está bom de ver,
o mais fiável cúmplice da noite –

– da noite que devia dissipar,
e não fundir-se nela.

Defeito de fabrico.
Mas a garantia caducou e o fabricante
nega-se a ressarcir-me do escuro.


in Cobra-d'Água

imagem abyss


Fernando Namora


Poema da Utopia


A noite

caiu sem manchas e sem culpa.

Os homens largaram as máscaras de bons actores.

Findou o espectáculo. Tudo o mais é arrabalde.


No alto, a utópica Lua vela comigo

E sonha coalhar de branco as sombras do mundo.

Um palhaço, a seu lado, sopra no ventre dos búzios.

Noite! Se o espectáculo findou

Deixa-nos também dormir.


in Relevo

imagem abyss



Matilde Campilho

Two-Lane Blacktop


Aprenderei a amar as casas

quando entender que as casas são feitas de gente

que foi feita por gente

e que contem em si a possibilidade

de fazer gente.

imagem pxfuel


Vladimir Maiakóvski


Dedução


Não acabarão nunca com o amor,

nem as rusgas,

nem a distância.

Está provado,

pensado,

verificado.

Aqui levanto solene

minha estrofe de mil dedos

e faço o juramento:

Amo

firme,

fiel

e verdadeiramente.


imagem unsplash

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