O Paraíso

25-11-2024

De António Lobo Antunes

'O Paraíso de Benfica', Fotografia da Biblioteca de Arte Fundação Calouste Gulbenkian
'O Paraíso de Benfica', Fotografia da Biblioteca de Arte Fundação Calouste Gulbenkian


Quando eu era pequeno havia duas pastelarias em Benfica. Uma por baixo da igreja, frequentada pelo proletariado do bagaço, sempre cheia de serradura e de beatas esmagadas a que chamavam Adega dos Ossos e onde me desaconselhavam ir no receio de que eu me viciasse funestamente na ginginha e no Português Suave e acabasse os meus dias a jogar dominó, a perder à sueca e a tossir no lenço. Era um estabelecimento escuro, cheio e garrafas na parede, em cuja vitrina havia mais moscas que pastéis de nata. Para além das prateleiras de lombadas de garrafas, uma biblioteca de delirium tremens, lembro-me do empregado vesgo, de olho direito furibundo e esquerdo de uma benevolente ternura e do senhor Manuel sacristão que ali descia entre duas missas, de opa vermelha, a comungar copos de três numa unção eucarística oculto por trás do frigorífico no receio prior, todo ele severidade e botões desde o pescoço aos sapatos e para quem o vinho, quando fora das galhetas, adquiria a demoníaca propriedade de tresmalhar as ovelhas levando-as a preferir o rosário das seis horas a favor do vício abominável da bisca.


A outra pastelaria, quase em frente da primeira, tinha o nome de Paraíso de Benfica, era frequentada a seguir à missa por senhoras de devoção inoxidável, antimagnética e à prova de bala, como por exemplo as minhas avós e as minhas tias cuja intimidade com os santos me maravilhava e que se apressaram a ensinar-me o catecismo a partir do dia em que perguntei apontando uma pagela do Espírito Santo

- Quem é este pardal?

tentando explicar-me que Deus não era um pardal, era um pombo, e eu imaginei-o logo na Praça de Camões, a comer à mão dos reformados o que não me parecia uma actividade muito compativel com a criação do universo.

O Paraíso era o local que as senhoras invadiam a seguir à missa e os homens durante ela.

(Quando uma prima minha, indignada, perguntou ao marido se não ia à igreja ele respondeu com um sorrisinho óbvio

- Não preciso: estou no Paraíso. É mais fresco e tem cerveja.)

Ao contrário da Adega dos Ossos cheirava bem, nenhum empregado era vesgo, proibia-se o dominó, a opa do senhor Manuel não flutuava, clandestina, por trás do frigorífico e sobretudo os meus irmãos e eu tínhamos conta aberta para bolos e sorvetes. De início achei a conta aberta uma generosidade tão tocante que quase me fez chorar de gratidão. Compreendi depois que não se tratava propriamente de generosidade: é que aos domingos almoçávamos em casa da minha avó e a oferta destinava-se a desviar-me das nádegas rupestres da cozinheira cujos encantos eu havia começado a descobrir por essa altura. Dividido no meio de dois Paraísos igualmente celestiais hesitei meses a fio entre as duchesses e o fogão de quatro bicos.

Acabei por optar pelo fogão. Quando tempos volvidos a cozinheira se casou com um polícia

(todas as cozinheiras casavam com polícias)

e tentei regressar às bolas de Berlim, a minha avó desiludida com os meus pecados havia cancelado a conta. Desesperado, dispus-me a acompanhá-la a Fátima numa excursão de viúvas para lhe reconquistar o afecto e os bolos de arroz: nem esse sacrifício heróico a comoveu. E passei a viver numa dupla orfandade insuportável da qual nenhuma queijada nem nenhum avental se interessaram até hoje em salvar-me.


Algumas Crónicas

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